Antropóloga Taniele Rui analisa as políticas de drogas na favela da Maré, no Rio, e na Cracolândia, em São Paulo

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por Bruno Rico

O É de Lei estreia seu novo portal com esta entrevista com Taniele Rui, antropóloga, mestre (2007) e doutora (2012) pela Unicamp, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política, e pós-doutoranda no CEBRAP, no Núcleo de Etnografias Urbanas.

Capa do livro “Nas tramas do crack:
Etnografia da abjeção”
Em 2013, Taniele ganhou o prêmio Capes de Melhor Tese de Doutorado 2013, e a pesquisa virou livro, “Nas tramas do crack: Etnografia da abjeção”, que foi lançado este ano pela Editora Terceiro Nome.

Atualmente, ela estuda as cenas de consumo de crack na Cracolândia, em São Paulo, e na favela da Maré, no Rio de Janeiro. Nessa entrevista, conversamos sobre alguns paradoxos das políticas públicas voltadas às populações em situação de rua e usuária de drogas.

Taniele observa um “confronto de expectativas” entre o usuário e os serviços do Estado, onde serviços de assistência e saúde se misturam a serviços de disciplina e ordem.  De um lado, a dinâmica da vida dos usuários é determinada pela dinâmica dos horários e regras dos sistemas de atendimento, seja nos albergues, nos restaurantes populares, nos CAPS ou nos centros de convivência. De outro, o Estado espera que deixem as ruas.


 

Antropóloga analisa as políticas de drogas na Maré e na Cracolândia

PERGUNTA: Vemos que é muito comum hoje – talvez por causa do crescimento da importância dos Direitos Humanos, talvez por causa do contexto democrático, talvez devido às lutas – existir algum atendimento à população em situação de rua e usuária de drogas. É algo que até me surpreendeu pessoalmente quando vim trabalhar no É de Lei: sim, há políticas públicas. São sempre passiveis de crítica, mas tem. Só que a relação entre os usuários e esse atendimento parece ser sempre problemática. No seu trabalho, você está comparando dois cenários – o da Favela da Maré e o da Cracolândia – observando justamente a relação entre os usuários e as políticas desenvolvidas. Pode descrever um pouco esses ambientes? 

TANIELE RUI: Isso que você está falando é bem importante. Isso vai contra essas teses de ausência do Estado. O que vemos empiricamente é que tem Estado, e às vezes tem até bastante Estado. […] Então a pergunta é: se tem Estado, porque que esse Estado não se reverte em garantia de direitos? Que presença é essa do Estado? […]

Essa gestão estatal é feita da seguinte forma: em primeiro lugar, o Estado tem que gerenciar o espaço. Então combinam políticas de assistência/saúde de um lado com  políticas de contenção/repressão de outro. Sempre nesses cenários tem policia militar junto com profissionais da assistência, profissionais da saúde, ONGs e uma série de outras instituições que vão brotando.

O caso da Maré é um pouco diferente. Ela está no meio de uma confusão que é o próprio Complexo da Maré, que tem três facções, tem milícia e essa constituição da UPP (Unidade de Policia Pacificadora), que tem Exército, forças de pacificação. É um cenário diferente do de São Paulo.

Em São Paulo, tem essa diferença oposição/situação (entre Estado e Prefeitura), mas na prática os serviços trabalham juntos. […] Por exemplo, entre o [projeto] Recomeço (Estado) e o Braços Abertos (Prefeitura), você vê profissionais do Recomeço na tenda e do Braços Abertos no Recomeço. Quer dizer, no plano macro eles estão em uma Dinâmica de oposição, mas no trabalho local há cooperação.

Polícia reprime população da Cracolândia (Foto: Nilton Fukuda/Agência Estado)

PERGUNTA: De fato, se você olhar o cenário da Cracolândia, vamos ver isso, o Braços Abertos, o Recomeço, o Complexo Prates, o Cratod… No caso da Favela da Maré, é parecido o contexto? Tem instituições semelhantes?

TANIELE RUI: Na favela da Maré, tem uma coisa que me inquietou: como os usuários provocam a ida dos serviços. Primeiro que eles já foram para a Maré porque eles estavam sendo deslocados de Manguinhos e Jacarezinho porque teve a [implementação da] UPP. Eles cruzaram a Avenida Brasil e entraram para a favela da Maré. Desde Novembro eu to lá. Esse ano, surgiram dois serviços. Um chama Proximidade, da Assistência Social da Prefeitura do Rio. E na esquina seguinte surgiu um CAPS-AD. Os dois, em parceria com os consultórios de rua. Então a própria constituição de uma cena de uso provoca e produz o serviço. Esse programa Proximidade está dentro de um CRAS, então é tudo da Assistência Social. Tem o restaurante de um Real – que eles chamam de “garotinho” porque foi criado durante o governo Garotinho. Então tem Proximidade, o Consultório de Rua, restaurante de um real e CAPS-AD.

Não tem um albergue direcionado. Só que essa cena de uso carioca é muito interessante porque ela é, assim, barraco. os usuários vivem em barracos. eles vivem em barracos. é uma extensão da própria favela, onde eles estão nas próprias casas. É um fenômeno muito mais territorializado do que no centro (de São Paulo).

Marcos Michael/Veja – O Complexo da Maré ocupa uma área de 800 mil metros quadrados e reúne 130 mil moradores, sem saneamento básico

PERGUNTA: Você disse que a cena de uso na Maré teve a sua raiz na implantação da UPP de Manguinhos, é isso? 

TANIELE RUI: Na verdade, sim, o grande fluxo.  Tinha alguns usuários de crack ali, mas eles se tornaram em maior número depois a intervenção e a implantação da UPP de Manguinhos e Jacarezinho.

Agora que a UPP já se colocou, já tá tendo problemas, já tá tendo usuário voltando, outros ficando na Maré…. Enfim, acho que faz parte das dinâmicas itinerantes dessa cena.

PERGUNTA: Onde tem mais Estado, Cracolândia ou Maré? 

TANIELE RUI: Ali é uma cena que tá dentro de um bairro. Então tem outras lógicas de ordenação operando. Não que a Cracolândia não esteja dentro de uma comunidade. Ela está, mas o centro de São Paulo, os centros das grandes cidades, provocam outras dinâmicas do que uma área de favela. Então nessa área, da Maré, os usuários tem uma relação com a associação de moradores, com o tráfico de drogas local, que de alguma maneira vai gerenciar aquele ordenamento, até onde eles podem ir até onde não podem. Eles tão mais fixos (do que na Cracolândia). Eles não podem caminhar por todo o bairro. Então tem dinâmicas de bairro mesmo. E são em número menor. Não chega a ser o que é São Paulo.

Operação no Complexo da Maré. Marcelo Sayão/EFE/VEJA

PERGUNTA: No seu trabalho, você usa a expressão “confronto entre usuários de crack e órgãos assistenciais, sanitários e repressivos”. Supostamente os serviços estão lá para ajudar o usuário. Que confronto é esse?

TANIELE RUI: É um confronto de expectativas. O serviço quer dar banho e o cara não quer porque mais sujo ele ganha mais dinheiro, por exemplo. É desde esses confrontos mínimos até o cara não quer sair de lá e o serviço quer que ele vá para um albergue. Não tem consenso. É sempre uma disputa entre projetos de vida.

PERGUNTA:  Parte das políticas voltam-se à Saúde e ao cuidado em geral e outras concomitantes visam a disciplina e fatalmente podem ter um caráter higienista. Como é isso do ponto de vista deles? – você disse que está estudando do ponto de vista deles…

TANIELE RUI: A questão é assim: que uso as pessoas fazem desses serviços? Que uso fazem do Recomeço? Que uso fazem do Braços Abertos? Que uso fazem do CRAS? […] Por exemplo, o cara da um tempo no CAPS-AD, depois vai comer no um real, se tiver muito louca a vida, vai dormir uns dias numa clínica… Do ponto de vista das pessoas, é assim que elas fazem arranjos. É claro que a gente não vai lutar por isso porque o nosso papel, enquanto defensor de direitos, tem a ver com lutar pela realização dos direitos. Mas eles fazem os arranjos deles.

PERGUNTA: Outro dia fizemos um vídeo com os conviventes do É de Lei e perguntamos “o que é morar na rua?”. E um deles falou assim: ah, é você deixar o Estado manipular você. O que você acha disso? 

TANIELE RUI: Ele entendeu que tem Estado pra @#-$%@ ali né? Que a vida dele tá sujeita a uma série de desmazelos governamentais. Acho que ele entendeu muito bem. Morar na rua é isso: você tem que saber onde estão os serviços. Aí você vai organizando a sua vida de acordo com os serviços. Então acorda num lugar vai em outro para almoçar, outro para passar a manhã, outro para passar a tarde, outro para voltar para dormir. Então você vai entendendo como é a lógica governamental e vai se movimentando em torno disso. Achei de uma sagacidade impressionante [a resposta do convivente]. Ele percebeu que aquilo que é escolha tem a ver com como se movimentar entre os serviços governamentais.

E não a toa os centros das cidades tem mais pessoas em situação de rua porque é onde se concentram mais os serviços para essa população. Então o caso da Maré me interessou por isso. Se não é no centro, como é que elas dão conta de viver numa favela, numa comunidade, e quais recursos elas tem que acionar, se não é só o Estado? Então você vê que tem uma rede de relações, de etiqueta, com os vizinhos, com o bairro. Eles não caminham por todo o bairro. É muito interessante isso. A gente vai debater hoje um texto (na aula) e a autora fala isso. Estar na rua é saber se relacionar com a cidade, saber ler a cidade. Imaginar o que a cidade quer de você e aí você vai se movimentando de acordo com isso.

Soldado realiza patrulha em um blindado da Marinha no complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro – Ricardo Moraes/Reuters/VEJA

PERGUNTA: Estamos chegando ao final da entrevista e vou te fazer uma pergunta que pode parecer um tanto cínica, mas não vejo forma mais direta de fazer: em que concretamente contribuem essas políticas públicas voltadas para a população em situação de rua?Que resultados elas produzem na cidade e na vida dos envolvidos? 

TANIELE RUI: Bom, claro que eu tenho que te falar que é melhor tê-las do que não tê-las. É melhor ter um albergue do que não ter. É melhor ter um centro de acolhida do que não ter. Agora, se esses serviços conferem autonomia, se conferem que os moradores de rua sejam alçados à condição de sujeitos de direitos – e não só alguém que recebe benesses do Estado, são discussões que a gente precisa fazer urgentemente. Agora, em que elas contribuem a gente tem que perguntar para eles.

PERGUNTA: Você já perguntou isso?

TANIELE RUI: Já. Eu voltei para a [pesquisa na] Cracolânda e tenho perguntado para eles sobre o Braços Abertos. Eles falam duas coisas que eu acho bem significativa. Eles dizem que ajuda a dar um tempo da vida loka, tem um lugar para dar um tempo, pra ficar, e melhora a relação com a política. Acho genial. Eles tão dizendo isso, que uma coisa urgente da rua é a situação com a polícia,. O cara não ficar sendo obrigado toda hora a circular porque não pode parar em lugar nenhum, porque está ferindo a ordem pública. Talvez isso não era o que tava sendo esperado pela política, mas para eles é muita coisa.

PERGUNTA: Enquanto antropóloga, o que acha disso? O que funciona e o que tem que mudar nessas políticas públicas? 

TANIELE RUI: Acho o seguinte. Tem as mais violadoras de direito e tem as mais promotoras de direito. Então, primeiramente, eu acho que as políticas tem que promover direitos. Não achar que eles estão dados, mas tem que continuamente trabalhar para promovê-los. Pensar em coisas mínimas mesmo. Como ter acesso a casa, trabalho. Isso se a pessoa quiser.

Algumas eu acho que tem que aprimorar, escutar mais… E uma coisa que eu tenho observado: os profissionais mais capacitados tem sido deixados de lado no jogo político. É fundamental haver esses mediadores no jogo. Eu acho que eles fazem a ponte com os direitos. […]alguns estão sendo deixados de lado. Por exemplo, a coisa que aconteceu no Prates. Tirar os profissionais mais capacitados sob o argumento de que eles tutelam. Eu vi por exemplo aquela entrevista do Haddad com o Bruno Torturra. A fala dele foi muito sorrateira. Ele disse como se até então tudo que havia era a repressão de um lado e, de outro, que os profissionais que atuam próximos estavam agindo com tutela. Então o que ele fez, encurtou o caminho da repressão de um lado e dos mediadores de outro e foi direto conversar com os usuário. Eu acho que tirar essa mediação tem riscos políticos. A conquista ou a promoção de direitos envolve você ouvir muitos atores. Quando você tira de cena justamente aqueles que estão mais preocupados em promover isso tem que ser visto com muita cautela. Esses profissionais estão lá há dez quinze anos. Não dá para tirá-los de cena.

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